Crônicas Visuais: Condomínios

“Eu era o mascote da turma e me sentia importante por isso. Claro que estava em uma posição de privilégios: todo doce era meu. Perdi as contas de quantas balas ganhei naquela época”.

Se tinha uma pessoa religiosa era a minha avó. Todo dia ela acordava, lia a bíblia, rezava o terço e partia para seus afazeres domésticos. Pela noite, ela cumpria novamente o combo terço + leitura da bíblia. E sempre foi assim, desde que eu me entendi por gente.

A religião foi muito importante na minha infância. Minha avó carregava-me para os terços quase todas as tardes e ensinava-me a conduzir uma oração com maestria.” Vamos pro terço, melhor que ficar fazendo besteira na rua”, dizia. A diversão era pouca onde morávamos, e ela sabia que cabeça vazia era oficina do diabo. Resolveu agir.

Até hoje, existe uma capelinha que passa pelas residências e Dona Dé era coordenadora que zelava pelas images. As pessoas se reuniam ao redor da santinha para rezarem, e eu sabia, exatamente, como cada senhora orava. No final, as mulheres riam, falavam da vida, conversavam sobre amenidades. Eu era o mascote da turma e me sentia importante por isso. Claro que estava em uma posição de privilégios: todo doce era meu. Perdi as contas de quantas balas ganhei naquela época. E os lanches? Ah, os lanches. Eu gostava dos terços, principalmente pelos lanches que havia depois da reunião. Mas uma coisa eu entendi: na favela onde morávamos, muitas vezes não havia guloseimas. Nos condomínios da redondeza, havia. Foi quando comecei a selecionar para quais terços eu queria ir. 

De forma sábia, minha avó percebeu a minha esperteza, e um belo dia, disse:
“Vamos rezar na casa do seu Geraldo”. E fomos. Quando chegamos, vi o que chamam de miséria. Era a pobreza por excelência. Um senhor deitado na cama, sem dentes, não muito cheiroso, doente, morando em lugar muito pobre e sujo. A impressão que tive , era que aquele homem fora abandonado. Eu tinha mais ou menos uns 9 anos e entendi o motivo da minha avó ter me levado. “O mundo não é o condomínio que visitamos. Precisamos ajudar as pessoas”. Essa foi a lição que aprendi.

Minha avó me introduziu no mundo real. O mundo das pessoas que sofrem. Criança , entendi, mesmo com limitação, que existem pessoas em situação de vulnerabilidade social muito grande. Eu não entendia por que o mundo era assim, entretanto, ela me ensinou que fazer, às vezes, é melhor que entender. E ela fazia; orava pelos enfermos, visitava hospitais, dava de comer aos pobres.

Não sou mais católica, mas ela me ensinou que religião é só um roupa. Cada um usa a roupa que mais lhe agrada . Apesar dela nunca conseguir entender como funciona o budismo que frequento, sempre respeitou. E a única coisa que ela me exigia era: visite as pessoas que sofrem. Fora dos condomínios. E por isso, eu sinto tanta saudade.