Celio de Andrade foi o diretor do vídeo que concorreu com várias universidades canadenses.
“Demorei para escrever sobre isso, mas senti a necessidade de falar agora porque é importante compartilhar essas histórias, pois ela não envolve só a mim, mas tudo que ser negro e cria de favela representam e as responsabilidades que isso traz, onde quer que estejamos no mundo”. Celio de Andrade começa escrevendo a publicação em que expõe um desabafo vitorioso em sua rede social, de quem demora ainda um pouco a aceitar as consequências de sua construção de carreira. O jovem, que viveu a maior parte da sua vida no morro do Sereno, no Complexo da Penha, ganhou um prêmio de marketing no Canadá, no mês de agosto. Porém, o comunicador resolveu revelar para a maioria das pessoas somente no fim de outubro.
“Nem eu imaginava que um dia algum trabalho que eu tivesse realizado ganharia um prêmio no Canadá. Mas uma das habilidades de favelados e faveladas é transformar o pranto em superação. E isso a favela faz muito bem. Nós somos potência e resistência em qualquer parte do mundo”, revela Celio.
O jovem foi em busca de melhores oportunidades de emprego e de estudo fora do Brasil no fim de 2018. Em 2019, ele começou as aulas no Georgian College e logo se candidatou para ser voluntário no departamento de marketing de uma instituição chamada Enactus. Lá, foi o diretor de marketing e o responsável pela criação do vídeo que venceu o prêmio ‘Enactus Georgian Competition’. O seu grupo concorreu com várias universidades do país. Celio, em seu discurso, lembra a frase do piloto Hamilton, que diz que “o mais importante é o que se faz fora do carro”. Para o jovem, a missão é a mesma, os meios são os que chamam a atenção para a verdadeira luta.
“Eu conto essa essa história, pois nessa época de pandemia, eu lembro muito do autor indígena Ailton Krenak, quando diz que adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Conto mais essa história para lembrar aonde a favela pode chegar com oportunidades. Conto mais essa história para dizer que não somos melhores nem pior que ninguém e que nós podemos oferecer grandes coisas ao mundo.”
Contador de histórias
Celio sempre foi um ótimo comunicador. Desde criança quis ser ator, na adolescência era fascinado pelo Harry Potter e dublava todas as frases dos filmes. Não teve uma infância fácil, mas também aproveitou e percorreu as ruas da sua comunidade, onde brincava nos barrancos e nas obras em épocas de ‘favela bairro’. Apesar dos barrancos do morro serem perigosos em época de chuvas de verão, eles eram utilizados em outras tempos como esporte radical, onde os “crias’ desciam escorregando os morros. “Deus protege os bêbados e as crianças de favela”, revela.
Quando tinha mais ou menos 14 anos, houve um deslizamento de terra em sua comunidade e foi ali que descobriu que a comunicação poderia ser um aliado para ajudar pessoas. “O padre da minha igreja queria fazer uma matéria para mandar para o poder público. Eu fui com o padre, tirando foto, fiz até postagem no Orkut. E foi ali que eu descobri que a comunicação poderia modificar a vida das pessoas”.
O adolescente foi elogiado e resolveu seguir seu instinto. Fez curso técnico de audiovisual e sua primeira faculdade foi também na mesma área. Mas devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho, fez vestibular novamente. No período dos exames, Celio morava em Campinas com o namorado, mas voltou para o Rio para cursar Relações Públicas na UERJ.
Ainda no período da faculdade, Celio criou o canal RPeriférico, para falar sobre questões de favela e pautas LGBT. Por ser favelado, negro e gay, queria contar as histórias e sua vivência para que outras pessoas pudessem se identificar com suas narrativas. “Eu sempre quis me comunicar, sempre quis ser ouvido. Eu criei o RPeriférico porque eu queria falar de favela e sobre pautas LGBT que eu queria que tivesse mais espaço na mídia”.
Celio já contou histórias sobre o parque Shangai, localizado na Penha, Zona Norte do Rio, percorreu o mercadão de Madureira, falou sobre sua “voz de gay”, sobre curas espirituais (que nunca aconteceram) da sua homossexualidade, se é possível ser vegano sem grana entre outros assuntos. Passando muitas vezes pela polêmica, o jovem nunca quis esconder seu verdadeiro posicionamento. O canal mudou de nome e agora se chama Celio AJ. No Canadá, ele conta um pouco sobre sua rotina fora do Brasil, mas ainda narra episódios engraçados e leves como o dia em que se sentiu culpado por comer doce de Cosme Damião, pois era “crente”.
De mala e cuia e saudades do Brasil
Desde adolescente, Celio revela que sempre quis fazer intercâmbio e estudar inglês. “Eu pertubava meus amigos na escola por causa disso”. Após se formar em relações públicas na Uerj, ele viu um Brasil extremamente polarizado e voltado aos discursos de ódio. Com o resultado das eleições presidenciais de 2018, tomou a decisão de dar forma ao desejo anterior. Ele e o marido foram tentar a vida fora do país, longe de qualquer tipo de represália. “A questão de ser gay e casado com um homem é muito perigoso no Brasil”, alega Celio.
Ele também afirma que no Brasil, as vagas no mercado de trabalho da comunicação são bem elitistas e diz que no Canadá teve mais condições de ter uma vida com conforto. “ O sistema não é feito para você, ainda mais se é negro e veio da favela. Aqui no Canadá eu já tive mais oportunidades que no Brasil para ganhar dinheiro e ter uma qualidade de vida melhor”.
Apesar de tudo, sente falta dos amigos e da família no seu país de origem. Seu irmão, Cassio de Andrade, formado em filosofia, também se mudou para o Canadá. Toda vez que se conectam com a família e amigos que estão no Brasil, eles respiram, revivem suas raízes e não negam seu local que construiu quem são. Em uma homenagem, Celio fala sobre as figuras importantes da sua vida: sua mãe, sua avó e sua madrinha.
“Muitas pessoas podem escolher a leveza, mas para estas mulheres a única opção foi a luta. Não vou chamá-las de guerreiras pois não quero romantizar suas trajetórias. Elas estão além disso. Ela são mais que isso! Elas sobreviveram em condições que muitos teriam desistido. Ainda não há uma palavra em português ou qualquer outra língua para definir o que elas são”.
O jovem diz ainda que sua mãe o ensinou a “nunca levar desaforo para casa”. Coisa que ele faz muito bem e aprendeu, com todas as dificuldades impostas, qual o seu papel no mundo: brilhar.